sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Fim de viagem

Regressei ao fim de três anos, sem saber em que estado encontraria as minhas coisas. Até me surpreendeu verificar que a casa estava à minha espera, como um cão fiel naquele seu ar de inquirir por onde teria eu andado durante tanto tempo sem dar notas de vida.
Tinham sucedido, decerto, infindas coisas na minha ausência. Muitas mais do que eu poderia calcular.
Antes de me preocupar em saber fosse o que fosse, decidi que veria com atenção o estado dos meus papéis, livros, fotos antigas, armários, gavetas, roupas que provavelmente já não me serviam.
Mal meti a chave à porta, percebi que o telefone tocava com insistência. Quem quereria falar comigo ao fim de todo aquele tempo durante o qual eu estivera ausente? Quem se lembraria de que eu ainda existia? Teria alguém adivinhado que eu acabara de chegar querendo dar-me as boas vindas?
Depois de reflectir dois segundos, decidi não atender. Não me encontrava em condições de falar com ninguém. Não saberia o que dizer. Para gaguejar, não valia a pena. Se fosse alguma urgência eu estava completamente fora do contexto, motivo pelo qual pouco ou nada poderia fazer. O mais certo era tratar-se de alguma maçada burocrática.
Pousei a mochila no átrio de entrada e olhei. Pouco restava da minha vida antiga. Após uma primeira observação, muita coisa parecia ter desaparecido, embora não fossem visíveis sinais de arrombamento ou vandalismo. Era como se os objectos tivessem decidido sair de casa, sem deixar aviso e sem dar contas a ninguém. Como se se tivessem aborrecido de tal forma com a sua solidão que não tinham suportado viver sozinhos por um período tão longo. Senti culpa pelo que fizera. Uma culpa distante, mas culpa, por não ter informado ninguém dos meus planos de viagem.
Compreendi que a casa estivesse quase ao abandono. O vazio que encontrei não me provocou mágoa. Pelo contrário, fez-me sorrir, sem que eu soubesse exactamente porquê. Não tive consciência de haver perdido nada. Um armário, um livro, uma cafeteira, talvez.
Seria pretensão pensar que a casa estaria intacta à minha espera, seria arrojo contar que os objectos estariam ao meu inteiro serviço e dispor. Não estavam e não me surpreendeu que não estivessem. A casa encontrava-se despejada de grande parte de mim. Talvez aquela parte que eu deixara pelo caminho das viagens.
Eu regressava diferente. Era natural, por isso, que o espaço da minha habitação não fosse o mesmo. Nem sei se o suportaria caso estivesse precisamente como eu o deixara. Talvez não aguentasse o confronto rigoroso com a casa na qual eu residira até três anos antes.
Quase gostei de ver as paredes despidas, nuas, desoladas. Significavam que algo ganhara vida enquanto eu andara por outros destinos, como se os objectos tivessem graça própria.
O que eu via era indício de um novo tempo que me aguardava. Um novo tempo, com novas pessoas, num novo espaço, com mais luz, mais cores, mais calor, onde escreverei o romance que desde há muito me segue. Virá, agora, outra escrita. Para que esta tenha aqui o seu fim.

domingo, 14 de novembro de 2010

Não me atrevi

Só nos faláramos uma vez por telefone e ao fim de poucos minutos já tínhamos combinado encontrar-nos em sua casa, dali a três dias. Da única conversa que tivéramos, ficara-me o timbre cavo da sua voz. Foi quanto bastou para que eu tivesse passado aqueles três dias impaciente, a ver se as horas corriam depressa. Mas não correram.
Quando entrei em casa de LDR, já não sabia em que pensar ou como proceder. Fizera cálculos, arquitectara cenários, tantos que acabara por perder a lucidez fundamental. Por precaução, dei antecipadamente o caso por fracassado. Não valeria a pena acalentar esperanças. Era mais do que certo que eu não me encontrava em condições de lidar com os dados que surgiriam.
Dez horas da manhã era cedo para alguém me receber em sua casa pela primeira vez. Só com alguém próximo se tinha tal procedimento. Este era um pormenor que aumentava a minha angústia.
Os meus pressentimentos bateram certo. O primeiro foi que não consegui chegar a qualquer conclusão. Ainda hoje, anos passados, não compreendo o contexto do que sucedeu.
LDR estava de roupão e conduziu-me para uma pequena sala, sentando-se numa cadeira à minha frente. Falava e balançava as pernas, que se iam descobrindo, enquanto me fixava nos olhos, como se estivesse à procura de encontrar neles o que as minhas palavras não diziam.
A comunicação é um dos meus aspectos marcantes, mas naquele dia falhei sem apelo. Para me acalmar, atribuí a minha derrota à hora a que o encontro se realizara. De resto, não tenho agora dúvidas de que LDR me quis receber cedo para fragilizar a minha posição.
LDR tinha acabado de acordar, o seu rosto apresentava um aspecto claro e limpo e estava coberto por um halo de tranquilidade que provocava em mim o efeito oposto. Eu receava que tudo não passasse de uma armadilha e que alguém pudesse entrar a qualquer momento, apanhando-me na situação pouco confortável de visitar uma pessoa que mal conhecia às dez da manhã.
Foi essa a razão, no fundo, porque não me mexi do meu lugar. Havia uma paralisia em todos os membros do meu corpo, como se uma cola me prendesse à cadeira.
LDR apresentou-me as suas ideias, o seu plano, que ouvi com atenção esforçada, tentando adivinhar se haveria alguma intenção oculta por trás do que me explicava. Eu sabia que só o tempo ditaria a razão dos factos, mas não perderia nada se me fosse dado descobrir algo de revelador logo na primeira ocasião.
A meio da conversa, LDR perguntou-me se eu aceitava um chá. Declinei, por não me sentir à vontade. E por cautela, também. Logo depois da minha recusa, saiu da sala, regressando algum tempo mais tarde, com uma minúscula xícara, que se pôs a sorver, em delicados goles, nos intervalos da conversa. Quando não bebia, depositava a xícara no braço da cadeira, como se o chá estivesse prestes a derramar-se, como se esse risco fosse lógico, como se até desejasse cair em algum embaraço para trazer dramatismo ao momento. Como se algo de sobrenatural pudesse de repente acontecer.
Mas não houve saída para o impasse. Concordámos apenas que voltaríamos a falar na semana seguinte. Eu precisava de tempo para recuperar das sensações que atravessara, precisava do meu tempo para voltar ao chão.
Sobre a pequena mesa de sala, reparei num insignificante vaso de flores secas. Pensei em Roma e em Amesterdão, mas não me atrevi a perguntar. Saí com a suspeita de que LDR não me voltaria a receber.